Desenvolvimento Sustentável: Habitação Ribeirinha Pantaneira (Parte 02)

Habitação Pantaneira Ribeirinha na região de Poconé. Foto do autor.

Como percebemos na “Parte 01” e dando continuidade aos nossos esboços e levantamentos da casa ribeirinha pantaneira da região de Poconé – MT e sua inter-relação com a cultura e o lugar, para a sustentabilidade ambiental da região, podemos observar que a mesma ultrapassou a ressonância sentimental dessa rica natureza pantaneira, quer essa riqueza esteja em nós, quer na poética do espaço tão bem escrita por Bachelart (2008).

“[…] Porque a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmo em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela? Os escritores de “casinha humilde” evocam com frequência esse elemento da poética do espaço. Mas essa evocação é excessivamente sucinta. Como há pouco a descrever na casinha pobre, eles não se detêm nela. Caracterizam-na em sua atualidade, sem viver realmente a sua primitividade, uma primitividade que pertence a todos, ricos e pobres, se aceitarem sonhar […]”.

Com este olhar descrito por Bachelart se balizou nossa investigação, a crescente conscientização quanto à importância do universo pantaneiro e sua proteção ambiental – aos possíveis impactos associados a construção da casa ribeirinha pantaneira da região de Poconé – MT – ao imaginário pantaneiro em sua origem, contribuindo com a fenomenologia elementar que queremos apresentar, conservando a sua simplicidade, eficiência e beleza.

Neste então processo cognitivo – realização das funções estruturais da representação das ideias ou imagem que concebemos do pantanal – ligadas a um saber referente à habitação pantaneira ribeirinha, já mencionado, a manipulação dos materiais naturais construtivos, ao longo de anos pela aprendizagem empírica do pantaneiro ribeirinho, permitiu um grande acúmulo de habilidades e conhecimentos, conforme relata CROSS (1999):

[…] como pode ser observado desde as construções vernaculares e desenhos rupestres, a humanidade dispõe de uma habilidade cognitiva inata para representar e “projetar” a construção de artefatos.

O mérito e a força da construção vernácula estão na combinação harmoniosa entre a natureza e tecnologia, engenharia e arquitetura, entre qualidade estética e utilização dos recursos disponíveis. E no Pantanal de forma perceptível, entre a ciência e a poesia do lugar.

Segundo Castelnou, Floriani, Vargas, & Dias (2003):

[…] esse interesse pela construção vernácula em ambientes urbanos ou rurais, refletiu-se inicialmente por meio de publicações, como Native genius in anonymous architecture (1957), de Sibyl Moholy-Nagy, e Design for a real world (1967), de Victor Papanek; e exposições, como a intitulada Architecture without architects, organizada por Bernard Rudofsky no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1963, para depois promover um intenso trabalho de investigação e análise.

Percebe-se então que as práticas vernaculares possuem elementos valiosos, principalmente quando se trata das questões ambientais, aproveitando e maximizando os recursos materiais locais, de modo a obter construtibilidade.

Neste caso específico de estudo o pantaneiro ribeirinho criou como produção deste espaço, de composição poética, uma ocupação espacial e arquitetônica própria acrescido de uma linguagem capaz de expressar a cultura local, dominando a técnica de trabalhar o barro e a madeira de forma simples e singular, sobretudo com um profundo conhecimento ambiental, que Galdino & Silva (2007) descrevem como “… um corpo cumulativo de conhecimento, práticas e crenças sobre as relações dos seres vivos com seu ambiente, evoluído através de processos adaptativos e repassados através das gerações por transmissão cultural”.

Tipologia da habitação pantaneira ribeirinha assentada na “ilha”, com escala humana. Fonte: Do autor.

A comunidade ribeirinha do Pantanal de Poconé, isolada em sua extrema simplicidade, diante de um fenômeno de consciência cintilante, reproduz estratégias de construção baseadas no conhecimento ecológico que respeita sua cultura pesqueira de conoa, de pecuária e de produção agrícola de subsistência, impondo  ordem na realidade sensível determinante do seu lugar, em um ambiente caracterizado por grandes áreas inundadas seguidas por longo período de secas, de forma periódica ao longo dos anos, que se diferencia nos meses de abril a outubro por quente e seco – umidade do ar chega a menos de 20% – e nos meses de novembro a março, por quente e úmido – umidade do ar chega a mais de 98%.

Historicamente essa comunidade, assim como outras do Pantanal de Mato Grosso[1], viveu em condições de isolamento do centro político administrativo e cultural do país por muito tempo. Mesmo considerando, conforme Bachelart (2008), “a poética da imagem na única expressão que é o verso, a repercussão fenomenológica pode se manifestar em sua simplicidade”, permitiu que os pantaneiros desenvolvessem uma forma peculiar de se relacionar com o meio ambiente e com as técnicas apropriadas ao local, no qual proporcionou seu desenvolvimento de forma sustentável, longe de qualquer intervenção exógena, como pode ser observado na utilização da flora, em Banducci Junior (1995):

[…] Da inflorescência do carandá as mulheres fazem vassouras, enquanto que seu tronco é utilizado na fabricação de mangueiros e cercas, resistentes à água. Aroeira, piúva, cumbaru, vinhático, pequi entre outras madeiras da região também são utilizadas para a construção de cercados, cochos e porteiras. Como lenha preferem o angico, cuja casca, bem batida, é excelente para curtir couro de animais. O cambará e a chimbuva são os mais recomendados na construção de canoas, que podem ser fabricadas com piúva, mais pesada, além de outras madeiras. O capim carona é ideal para se fabricar colchões e as folhas do faveiro para encher o suador dos arreios. Os espinhos, como os de laranjeira, são usados para palitar os dentes ou para retirar estrepes dos dedos. Com a espinha de maminha fazem dados para jogar “bozó”.

A utilização dos materiais – “consciência científica” do pantaneiro – neste caso específico, é totalmente absorvida como a poesia no seu ser. A imagem e a ciência como linguagem são tão novas que não podemos deixar de considerar a correlação entre ambas, entre o passado e o presente e, desta forma, concordar que a ciência está no pantanal sob o signo de um novo ser.

Em suma, quando a ciência se funde com o conhecimento empírico do pantaneiro, uma nova arte autônoma assume novo ponto de partida. E como pano de fundo desse cenário tão rico do imaginário nacional que é o Pantanal, mas possuidor de grande relevância neste colóquio encontram-se as questões ambientais e os princípios do desenvolvimento com sustentabilidade.

Abrolha enfim um grande problema a ser enfrentado….

O complexo pantaneiro – Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera – vem sofrendo progressivamente e paulatinamente ocupações na região de Poconé por não autóctones que, não conhecendo ou respeitando a tipologia, materiais e sistema construtivo local, trazem principalmente das áreas urbanas da Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá uma “cultura edilícia” de parcelamento do solo, materiais e sistemas construtivos, que comprometem a sustentabilidade da região e a conservação dos recursos naturais e ambientais, em todas as sete dimensões da vida: a econômica, a social, a territorial, a científica e tecnológica, a política e a cultural.

Um dos fatores detectados no aspecto territorialidade, ciência e tecnologia, se apresenta na falta de normativos e bibliografia especializada e ajustada, quanto à forma de apropriação deste espaço e tipologias construtivas ambientalmente adequadas para a região, denominadas neste colóquio de “desenvolvimento endógeno, orientado para as necessidades do pantanal e em harmonia com a natureza.

As questões sociais, políticas e culturais se expõem quando se detecta mudanças no “modus vivendi” do pantaneiro, causadas diretamente e ligadas aos aspectos econômicos, cuja influência direta se dá por não autóctones, nos matérias e técnicas construtivas utilizadas, trazidas da região urbana, que poluem o meio ambiente local em todos os seus aspectos.

Outro importante fator que não conseguimos detectar ao longo deste procedimento, foi a inexistência de inventário sobre o processo construtivo e materiais utilizados na casa ribeirinha pantaneira da região de Poconé que, por total ou parcial ignorância, podem vir a acarretar a completa extinção de grande riqueza patrimonial e cultural pantaneira brasileira, cuja adaptação e simbiose se faz perfeitamente à região e em plena harmonia com a natureza que a cerca.

Ainda quanto aos aspectos políticos, o papel desenvolvido nas comunidades locais relativos à produção da habitação – como preconiza o princípio 22 da Agenda 21, na ordenação do meio ambiente e no desenvolvimento devido a seus conhecimentos e práticas tradicionais – proporcionam pesquisas no interesse do desenvolvimento de métodos que melhor compreendam e possam lidar com os impactos causados pela construção civil ao meio ambiente, e particularmente, no nosso caso específico, resgate de diretrizes construtivas adaptadas ao pantanal de Poconé, assim como para a coleta das informações necessárias à gestão do bem, no auxilio de rotinas de fiscalização, construção de normatizações e planos de preservação, ou de diagnósticos visando à reabilitação total ou parcial do espaço degradado.

Então…. Tornar-se-á possível, a partir do conhecimento da “ciência empírica” do homem ribeirinho pantaneiro – como construtor de habitações e territorialidades sustentáveis – aplicar esta ciência em diretrizes construtivas atuais para ocupações alóctones no pantanal naquela região?

(Continua em Desenvolvimento Sustentável: Habitação Ribeirinha Pantaneira (parte 03).

[1] O Pantanal Mato-grossense é uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta, localizada no centro da América do Sul. Sua área é de 138.183 km2, com 65% de seu território no Estado de Mato Grosso do Sul e 35% no Mato Grosso, além de uma parcela menor que se estende em áreas da Bolívia e Paraguai.  A região é uma planície aluvial influenciada por rios que drenam a Bacia do Alto Paraguai – BAP. Basicamente, reúne ecossistemas derivados de quatro grandes biomas: Amazônia, Cerrado, Chaco e Mata Atlântica.

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About Eduardo Cairo Chiletto

Arquiteto e Urbanista - Presidente da Academia de Arquitetura e Urbanismo-MT. Coordenador Nacional de Projetos da PAGE - Brasil (2018 - 2023). Secretário de Estado de Cidades-MT (2015-2016)... Conselheiro e Vice-presidente do CAU/MT - Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso (2015-2017)
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2 Responses to Desenvolvimento Sustentável: Habitação Ribeirinha Pantaneira (Parte 02)

  1. Avatar de Francisco Oliveira Francisco Oliveira disse:

    Matéria interessantíssima, amigo!
    Parabéns!!!

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