Desenvolvimento Sustentável: Habitação Ribeirinha Pantaneira (Parte 03)

Pantanal de Poconé. Foto do autor

Para respondermos de forma contundente a indagação feita no final da “Parte 02” deste colóquio, faz-se necessário, a meu ver, estudarmos a territorialidade do pantaneiro ribeirinho e o sentido da sua habitação.

Que as minhas palavras não caiam de
Louvamentos à exuberância do Pantanal.
Que eu não descambe para o adjetival.
Que o meu texto seja amparado de
Substantivos. Substantivos verbais.
Quisera apenas dar sentido literário
Aos pássaros, ao sol, às águas e aos seres [1]

Originalmente edificada por povoações indígenas [2], a habitação passou a receber elementos construtivos não autóctones a partir do século XVIII, quando segundo Nogueira (1990), as terras pantaneiras foram definitivamente povoadas por não indígenas após o declínio da mineração em Cuiabá – MT.

Importante aqui ressaltar que a partir do século XVI após espanhóis e portugueses, adentraram-se no Pantanal e ocuparem a região, a miscigenação das etnias indígenas, europeus e africanos constituiu o ser denominado de homem pantaneiro e sua habitação.

Mas a 518 anos atrás, qual era o cenário de ocupação da “Terra Brasilis”, ou também denominada “terrae incognitae”- um local desconhecido e inexplorado?

Um pouco de história….

O Tratado de Tordesilhas acordado entre Portugal e Espanha – então potências marítimas, em 1494, dois anos depois do Descobrimento da América e seis anos antes do Descobrimento do Brasil, não só influenciou e direcionou o povoamento como também desafiou a ocupação brasileira.

Nos séc. XVI e XVII, enquanto a indústria açucareira se estruturava, o Brasil viveria um ciclo expansionista, estruturado nos canaviais e na pecuária. Fora o açúcar quem motivava o primeiro surto de criação de gado, exigido pela demanda de animais, tanto para atender a tração desgastante no intenso movimento de engenhos quanto para o consumo alimentar da massa trabalhadora. Mas a grande lavoura não permitiu que o criatório se estabelecesse à beira mar empurrando-o para o sertão agreste. A rusticidade e a mobilidade do boi se prestaram para essa circunstância. Vai penetrando lentamente Brasil adentro, quase sem se fazer notar, simultaneamente alimentando o colonizador, auxiliando-o nas lavouras, ocupando e alargando horizontes.

Importante observar que esta forma de ocupação forçava dizimando, empurrando os indígenas para o interior, devastando a sua cultura litorânea.

A importação do braço africano e a chegada de artesãos lusitanos, em número crescente, possibilitam o surto arquitetônico que caracterizaria o século XVIII. Mas não apenas escravos e mestres de obras eram trazidos para o Brasil: materiais de construção, como os azulejos portugueses, e mesmo pedras lavradas chegaram continuamente da metrópole e iam contribuir para o crescimento da construção no interior, com mão de obra local e características regionais.

Há muito se sonhava com riquezas fabulosas escondidas no interior do continente. Há muito se esperava o grito febril da descoberta do ouro, que foi ouvido imediatamente do outro lado do oceano, de onde milhares de aventureiros se debandam. O interior da colônia, tão distante e desconhecida, tornou-se atração para os que sonhavam com a riqueza imediata.

E o Brasil assiste ao maior fenômeno das migrações internas. A agroindústria açucareira se desorganiza e os agricultores vendem a altos preços as escravarias para serem empregadas na mineração. O início do ciclo minerador coincidiu também com a grande baixa no preço do açúcar no mercado internacional, cuja crise foi causada pela política colonial francesa e inglesa.

“[…] estado de prostração e pobreza em que se encontravam a Metrópole e a colônia explica a extraordinária rapidez com que se desenvolveu a economia do ouro nos primeiros decênios do século XVIII. De Piratininga a população emigrou em massa, do nordeste se deslocaram grandes recursos, principalmente sob a forma de mão-de-obra escrava, e em Portugal se formou pela primeira vez uma grande corrente migratória espontânea com destino ao Brasil […]” (FURTADO, 1967, p. 79-80).

A mineração proporcionou a primeira corrida para o coração do Brasil. O povoamento aurífero do interior se fez desordenado, intempestivo e sem nenhuma programação. Os desconhecidos sertões de Mato Grosso são desbravados de um momento para o outro e uma diferente massa inexperiente, pôr falta de práticos formados, transita pelas encostas perdendo-se pelos matos e destroçando-se pelas cachoeiras.

Logo de início a mineração se viu seriamente ameaçada pela fome, pois, nenhuma estrutura fora implantada para receber tal contingente populacional, a se alimentar de tudo que encontrava frutos, caça e pesca.

Atividade extrativa só se tornou possível graças as enormes boiadas que se desabalaram, primeiramente as que já estavam instaladas as margens do rio São Francisco, em seguida convocadas as da Bahia, de Pernambuco, Piauí e Maranhão, e também as de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Apenas elas, as boiadas, podiam passar tranquilas pelos caminhos vigiados para se evitar o contrabando do ouro. E com isso se instalou o criatório nas direções das terras auríferas de Mato Grosso.

No terceiro quartel de século XVIII, o ouro descobre Mato Grosso devassando e povoa a colônia explorando. Mas a febre do ouro logo cessara, verificando-se franca decadência. E neste período o Pantanal se torna a principal região de conflitos políticos e bélicos entre luso-brasileiros, espanhóis e índios da etnia Eyiguayegui, que segundo Weber (2007) :

“[…] Outro problema que incomodava o governo colonial era a possibilidade dos Eyiguayegui aliarem-se aos espanhóis, dificultando as pretensões da Coroa portuguesa de consolidar o domínio das terras do sul da Capitania de Mato Grosso. Assim, não houve outra alternativa para o governo da Capitania: cativar e estabelecer uma aliança com o grupo. Isso era uma estratégia política que vinha sendo proposta pelo governo português já na metade do século XVIII. Essa alteração da estratégia política trouxe significativas vantagens geo-políticas para a Coroa portuguesa, que, aos poucos, foi conquistando a região habitada por esses índios. Mas, antes que isso ocorresse, houve uma série de conflitos que contribuíram para que se desencadeasse esse fato […].”

A indefinição territorial persistiu durante todo o período colonial e levou a Coroa portuguesa a estabelecer novos rumos para a política indigenista, pois o Pantanal era um espaço constituído de território indígena.

Entre os séculos XVI e XVII a imensa planície inundável, descrita e desenhada como a fabulosa “Laguna de los Xarayes” [3], tornou-se o Pantanal por uma invenção luso-brasileira realizada no transcorrer do século XVIII.

W. J. Blaeu. Paraguay, Ó prov. de Rio de la Plata cum regionibus adiacentibus Tucuman et Sta. Cruz de la Sierra, 1631. Fonte: Costa (2007).

No decorrer de anos a imagem da “Laguna de los Xarayes”, de origem Espanhola, conviveu com o Pantanal, luso-brasileiro. Entretanto, paulatinamente, foram se identificando até que observações práticas de jesuítas e dos demarcadores de limites, com as primeiras observações científicas, pelo Tratado de Madrid (1750), Prado (1761) e depois, pelo de Santo Ildefonso (1777), demonstraram que a afamada “Laguna de los Xarayes” era o rio Paraguai espraiado, como relata o jesuíta José Guevara, em sua Historia del Paraguay, Rio de la Plata y Tucuman:

[…] Um desengano completo sobre a laguna de Xarayes se conseguiu com a expedição que se fez no ano de 1753, rio Paraguai acima. Alguns lhe davam cem léguas, de norte a sul, e dez de oriente a poente; outros mais liberais em alargar que em lidar com medidas, a estendiam cem léguas a todos ventos. Porém na realidade, esse espaçoso pedaço de terra que está entre a serra de Chiane, Morro Escarpado e rio de Cuiabá, quase desde os dezesseis até os dezoito graus, não é outra coisa senão um terreno baixo que se inunda no tempo de águas, com as vertentes da serra de Cuiabá e com o derramamento do Paraguai em tempo de crescentes […][4]

A denominação Pantanal, segundo Costa (2007):

[…] foi cunhada pelos mamelucos paulistas, que, seguindo as rotas abertas no final do século anterior pelos bandeirantes, continuavam a ignorar os limites fixados em 1494 pelo Tratado de Tordesilhas, adentrando pela bacia do Alto Rio Paraguai e avançando em terras espanholas. Mais ao norte não encontraram cidades fabulosas ou reinos encantados, tão sonhados pelos conquistadores do século XVI, mas sim palpáveis e lucrativos veios de ouro. Denominaram a região Minas do Cuiabá […].

Pode-se deduzir, desta forma, que a territorialidade assim como a arquitetura Pantaneira, teve muita influência, não só da ocupação autóctone indígena, mas, sobretudo da cultura mameluca paulista que aqui se instalou.

Retomando o processo de historicidade, um projeto imprescindível para a Coroa portuguesa, no período setecentista, no processo de colonização, foi o projeto de urbanização e incorporação de novas terras para ocupação efetiva do território. E desta forma no século XVIII, os portugueses passaram a ter uma atenção especial com a fronteira entre a Província do Paraguai e a Capitania de Mato Grosso, propiciando então a construção de Vilas, Fortes e povoações ao longo da fronteira, as margens do Pantanal.

Segundo Teixeira e Valla (1999) dentre as muitas vilas e cidades fundadas com traçados regulares, com estrutura reticulada, ortogonal, fruto da política de urbanização do Marquês de Pombal, podemos destacar Vila Bela da Santíssima Trindade (1777), com um modelo iluminista brasileiro urbano, idealizado por portugueses, com características em xadrez.

“Plano da Capital de Villa Bella do Matto Groço…”. Original manuscrito pertencente à família Albuquerque, que integra o acervo da Casa da Ínsua, Portugual. 1777. Pag. 394. Fonte: Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial – Nestor Goulart Reis.

Enquanto era discutida a questão dos limites com a Espanha, os portugueses, entre 1750 e 1781, fundaram várias povoações, garantindo por intermédio do “uti possidetis” a incorporação do Pantanal às terras portuguesas.

O núcleo criado, Vila Bela da Santíssima Trindade, tinha como objetivo garantir e consolidar a ocupação definitiva do extremo oeste do território brasileiro, servindo de centro aos vários núcleos mineradores existentes naquele território.

E no distante Mato Grosso, logo esgotado os veios auríferos mais visíveis, milhares de pessoas deixaram estes interiores, rapidamente do mesmo modo que chegaram. Nestas lonjuras, que só mesmo a promessa do garimpo pudera abreviar, sobreveio um silencioso e secular isolamento. Silêncio esse só quebrado pelo mugido do boi, a indicar proposta perene, não uma febre, mas uma certeza.

A pecuária deu sustentação a todos os núcleos suscitados pelo cascalho. Pois junto à faina dispersiva da bateia, o boi enraizou-se como árvore frondosa, principalmente na região do Pantanal de Mato Grosso, contribuindo significativamente para o assentamento do homem no pantanal.

Chegado ao fim desse esboço histórico, convém analisarmos, a existência de um patrimônio cultural arquitetônico pantaneiro ribeirinho, que se distingue no conjunto geral da produção da habitação ribeirinha brasileira, em especial a amazônica e se identifica com a cultura e manifestação do caráter local.

Sendo assim, na “parte 04” deste colóquio iremos finalmente adentrar no recorte temático da tipologia da Casa Ribeirinha Pantaneira…. Até lá.

[1] Manoel de Barros. Para encontrar o azul eu uso pássaros. Fundação Manoel de Barros. 1ª edição. 1999.

[2] Durante os séculos XVI e XVII, os Eyiguayegui-Mbayá-Guaicuru foram um obstáculo para a política de conquista, expansão e colonização espanhola no Chaco. No século XVIII, depois da travessia desses índios para o lado ocidental do rio Paraguai, o grupo passou a defrontar-se com os luso-brasileiros e tornou-se um obstáculo para as pretensões colonizadoras portuguesas no Pantanal. Em: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=historiadores&id=46#_edn3 Acesso em: 20/08/2011.

[3] Laguna de los Jarayes (em castelhano) é um lago lendário localizado nas nascentes do rio Paraguai por cartógrafos e cronistas hispânicos do século XVII, que chegou a ser considerado a localização do Paraíso Terrenal, ou uma porta de entrada para o reino das Amazonas e o Eldorado.

[4] GUEVARA, Padre. Historia del Paraguay, Rio de La Plata y Tucuman. Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836. p.55. (Colección Pedro De Angelis).

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About Eduardo Cairo Chiletto

Arquiteto e Urbanista - Presidente da Academia de Arquitetura e Urbanismo-MT. Coordenador Nacional de Projetos da PAGE - Brasil (2018 - 2023). Secretário de Estado de Cidades-MT (2015-2016)... Conselheiro e Vice-presidente do CAU/MT - Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso (2015-2017)
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